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História
A Era da Escravidão
Por André Schröder access_time29 mar 2019, 18h19 - Atualizado em 5 jul 2019, 14h21
Na primeira vez que viu o mar, Olaudah Equiano também avistou um navio negreiro ancorado à sua espera, na costa da Guiné, área ocidental da África. Nascido em 1745, em Eboe, no atual território da Nigéria, Olaudah tinha 11 anos quando foi raptado de casa para ser vendido como escravo. Não era o único: entre 1501 e 1870, mais de 12,5 milhões de pessoas foram arrancadas do continente africano para trabalhar forçadamente no outo lado do Oceano Atlântico. O comércio de escravos negros já exista muito antes dos europeus pisarem na América, mas foi a descoberta de novas terras que alçou o tráfico negreiro a um patamar inimaginável e transformou a África (e o mundo) para sempre.

Uma vez rendidos, homens, mulheres e crianças eram levados em marcha forçada até o litoral, onde eram embarcados nos navios negreiros. Equiano cruzou o Atlântico junto a negros originários de diferentes povos, amontoados e acorrentados no interior da embarcação. Temeu a figura do homem branco, que até então nem conhecia, sobretudo depois de ter sido açoitado por não comer, e viu companheiros serem castigados e mortos por traficantes.

Muitos deles tentaram pular no mar em busca de alívio com a própria morte. No século 16, a travessia podia levar meses, a depender das condições climáticas, mas, na metade do século seguinte, quando Olaudah esteve a bordo, a viagem durava ente 30 e 50 dias. Era comum que crianças viajassem no convés, um “benefício” concedido a Olaudah, que assim escapou das agruras dos porões.

Dos 12,5 milhões de negros embarcados na África, 20% não chegaram vivos ao destino, vítimas de disenteria, escorbuto, varíola, sífilis e sarampo, ou da brutalidade dos comandantes. Muitas vezes, os corpos dos mortos jaziam por dias junto dos vivos até serem lançados ao mar. Devido a graves infecções oculares, era comum o desembarque de escravos cegos.

Em terra firme, a situação do escravo não era muito melhor: a “vida útil” média de um africano nas plantações não passava de cinco anos e, aos 30 anos de idade, a maioria estava fisicamente arruinada.

A trajetória de Olaudah Equiano – o sequestro, a travessia transatlântica até Barbados e a longa década de escravidão encerrada com a compra da própria liberdade – está contada na autobiografa The Interesting Narrative of the Life of Olaudah Equiano, or Gustavus Vassa, The African (sem tradução para o português). Publicado em 1789, como parte do esforço abolicionista na Inglaterra, o livro retrata alguns dos horrores vividos pelos negros durante o auge da escravatura nas colônias americanas. Hoje, há até um esforço entre especialistas para usar o termo “escravizados” em vez de escravos, deixando claro que a escravidão foi uma condição imposta e não algo natural.

Raptado aos 11 anos, Olaudah Equiano ganhou o nome de Gustavus Vassa ao ser comprado por um oficial inglês.
Raptado aos 11 anos, Olaudah Equiano ganhou o nome de Gustavus Vassa ao ser comprado por um oficial inglês. (reprodução/Domínio Público)

Desde a Antiguidade, vários reinos anos africanos contavam com escravos, principalmente prisioneiros de guerras, mas também subjugados por dívidas, condenados por crimes ou miseráveis. A dimensão da escravidão nessas sociedades, entretanto, era limitada. Foram os árabes, durante a expansão pelo norte da África, a partir do século 7, que estimularam o tráfico de negros, com a abertura de rotas pelo Deserto do Saara, Mar Vermelho e Oceano Índico. No início, o interesse era por mulheres destinadas ao concubinato, mas logo o negócio esquentou em busca de homens para compor exércitos e trabalhar em lavouras e palácios do imenso império muçulmano. O controle desse comércio ficou nas mãos árabes por 800 anos, período no qual escravos africanos foram vendidos em diversas partes do mundo, inclusive na Europa.

Em 1433, graças a evoluções nas técnicas de navegação, os portugueses contornaram o Cabo Bojador, na costa do Saara, e avançaram pelo litoral africano até cidades ao Sul, abrindo uma nova rota comercial, paralela aos caminhos terrestres dominados pelos árabes. Diante da decepção com a falta de ouro no local, os portugueses voltaram as atenções para o tráfico de humanos para servirem de mão de obra nas plantações de cana. Nas décadas anteriores ao descobrimento da América, o país já praticava um comércio regular de troca de bens por escravos, tendo obtido inclusive o monopólio do negócio pelo Atlântico. Pela via portuguesa, o tráfico negreiro ganhou escala.

O súbito aumento de escravos em Portugal – em 1455, 10% da população de Lisboa era negra – provocou questionamentos sobre as práticas escravagistas, cruéis e distantes dos valores cristãos. Séculos antes, os árabes tinham lidado com o mesmo tipo de reprovação, um dilema superado com a elaboração de uma pseudoideologia de cunho religioso sobre a suposta inferioridade dos negros.

Na Europa, coube aos papas da época a absurda tarefa de tentar justificar a escravidão dos africanos. Em uma das bulas sobre o assunto, Nicolau 5o deu ao rei de Portugal permissão para invadir, buscar, capturar e subjugar os pagãos da África. Na visão dos pontífices, a escravização era justa perante Deus, porque preservava a vida dos escravos em um contexto de conflitos violentos. A autorização, na verdade, tinha o propósito de fortalecer o cristianismo diante do avanço muçulmano.

Em paralelo aos textos papais, corriam ainda teses fundamentadas em interpretações desvairadas de passagens bíblicas que tratam de uma suposta “maldição divina” dos africanos, ora apontados como descendentes de Caim, o assassino do próprio irmão, ora derivados de Cam, o flho amaldiçoado de Noé, que serviam a uma extensa gama de teorias racistas.

Mas a história da escravidão ganha seu capítulo mais dramático com a chegada dos europeus à América, em 1492, quando tem início o transporte maciço de africanos para o outo lado do Atlântico. A necessidade de mão de obra barata nas plantações aqueceu o comércio nos novos territórios. Com os altos preços, reinos da África adotaram o fornecimento de humanos como principal atividade econômica. Em troca, os chefes locais recebiam produtos variados, como tecidos, aguardente e tabaco. Outro bem valioso eram as armas, indispensáveis nas guerras travadas com objetivo de escravizar conterrâneos. Os conflitos abalaram as estruturas sociais do continente, que passou a conviver com a brutalidade desenfreada.

Brasil, maior porto de desembarque

A história oficial da escravidão nas Américas começa em 1502, quando uma frota de 30 navios liderada pelo espanhol Nicolas de Ovando chegou à Hispaniola, ilha que hoje abriga Haiti e República Dominicana, com 2.500 colonos dispostos a viver nas novas terras. Designado governador, Ovando organizou a indústria de cana-de-açúcar local e, diante do fracasso em contar com mão de obra indígena, solicitou aos reis da Espanha o início do tráfico.

Não há documentos precisos sobre a chegada dos primeiros escravizados ao Brasil, mas os desembarques oficiais tiveram início na década de 1530, também destinados à indústria da cana, que começava a despontar em algumas capitanias. Em 1583, o Brasil contava 14 mil escravos, um número que subiria constantemente até o auge do tráfico no País, entre 1800 e 1850, período em que 2,3 milhões de negros aportaram aqui.

O Brasil foi o país que mais recebeu escravos nas Américas. Quatro em cada dez negros que cruzaram o Atlântico até a segunda metade do século 19 tiveram como destino nosso país – um total de 4,8 milhões de africanos. As áreas fornecedoras mudaram ao longo dos tempos, mas a maior parte dos negros desembarcados por aqui eram de Angola e do Congo, seguidos dos escravizados em Moçambique e na região do Golfo de Benim, entre Gana e Nigéria.

O controle do tráfico, que nos primeiros tempos era português, também trocou de mãos e foi exercido por holandeses, franceses e depois britânicos. Na metade do século 18, época em que Olaudah Equiano conheceu o navio negreiro, a maior parte dos escravos tinha como destino as colônias britânicas. Na autobiografa, o ex-escravo conta que, ao chegar a Barbados, foi comprado por um oficial inglês e virou marinheiro. Foi nesse período que recebeu o apelido jocoso de Gustavus Vassa, nome de um rei sueco. Equiano ainda foi vendido mais duas vezes antes de comprar sua liberdade, em 1766, aos 21 anos. Livre, trabalhou como barbeiro em Londres, mas logo voltou ao mar como marujo contratado. Sua vida, porém, não se tornou menos dura, por causa dos preconceitos ainda hoje enfrentados por negros.

Quando a autobiografa de Equiano foi lançada, em 1789, a causa abolicionista estava em alta. Protestantes ofereciam argumentos religiosos, enquanto intelectuais do Iluminismo apresentavam razões humanistas. Havia também uma ideia de que as transformações causadas pela Revolução Industrial tornavam a escravidão um obstáculo para a formação de mercados consumidores.

Enquanto o debate nos círculos brancos avançava, negros nas colônias lutavam pela liberdade. Uma das revoltas foi o Quilombo dos Palmares, reduto de escravos fugitivos no interior de Alagoas e Pernambuco, que resistiu por quase um século até ser arrasado por tropas oficiais, em 1694. Outro caso foi a Revolta dos Malês, um levante de negros muçulmanos, oriundos especialmente do Sudão via Benim, que movimentou as ruas de Salvador em 1835. Em comparação com os demais escravos que chegaram aqui, os malês eram mais instruídos, muitas vezes alfabetizados em árabe, e carregavam um espírito rebelde. É considerada a mais importante revolta urbana de negros pela liberdade no Brasil. Mas o maior triunfo pela liberdade foi a Revolução Haitiana, iniciada em 1791 e que só terminou em 1804, com o fim da escravidão e a independência do Haiti do domínio francês.

A derrocada do tráfico negreiro começou em 1807, quando a Inglaterra aboliu o tráfico pelo Atlântico, medida seguida por França, Holanda e Espanha e depois pelos países latinos. O Brasil foi o último país das Américas a abolir a escravidão, em 13 de maio de 1888, com a assinatura da Lei Áurea, quando a pressão internacional já era insustentável.

Fontes: Uma História de Suas Transformações, Paul Lovejoy; História da África e dos africanos, Paulo Fagundes Visentini; A manilha e o libambo. A escravidão na África de 1500 a 1700, Alberto da Costa e Silva; El colonialismo en la crisis del XIX español. Esclavitud y trabajo libre en Cuba, Roberto Mesa. Historia del tráfico de seres humanos de 1440 a 1870, Hugh Thomas; Los comienzos de la esclavitud en América, Conrado Habler / Antonio María Fabié; O Navio Negreiro, Marcus Rediker; A Escravidão no Brasil, Jaime Pinsky; Escravos e Traficantes no Império Português, Arlindo Manuel Caldeira.

Por dentro de um navio negreiro
Em porões de navios escuros, sujos e quentes, cerca de 12,5 milhões de africanos escravizados foram trazidos para a América.
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(André Ducci/Superinteressante)

1. Revoltas

Muitos achavam que virariam comida ou seriam mortos de qualquer forma. Então se recusavam a comer ou se jogavam ao mar nas poucas horas em que podiam subir ao convés para se “exercitar”. Poucas rebeliões davam certo. Geralmente, os rebeldes eram lançados ao Atlântico.

2. Quem vinha

Os traficados eram, na maioria, meninos e jovens de 8 a 25 anos, mas isso mudou nos últimos anos do tráfico. “Tudo quanto se podia trazer foi trazido: o manco, o cego, o surdo, tudo; príncipes, chefes religiosos, mulheres com bebês e mulheres grávidas”, disse o ex-traficante Joseph Cliffer, em depoimento ao Parlamento Britânico, em 1840.

3. Tratamento

Um cativo morto era prejuízo na certa. Para prevenir isso, os membros da tripulação obrigavam os negros a dançar no convés para se exercitar, além de levarem cirurgiões a bordo a partir de 1750 – a preocupação, claro, era com o lucro e não com os escravos.

4. Bandeira

Autorizada por acordos com outras nações, na luta contra o tráfico, a Inglaterra seguia e vistoriava navios suspeitos em alto-mar. Como os Estados Unidos não permitiam essa vistoria, barcos negreiros de várias nações hasteavam a bandeira americana para passar por baixo do nariz dos ingleses.

5. Alimentação

Era composta principalmente de arroz, milho, feijão, carne seca e farinha de mandioca. Era servida em baldes onde dez homens tinham de comer juntos, o que provocava inúmeras brigas e infecções alimentares.

6. As condições

O chão em que ficavam era grotesco: coberto de sangue, suor e outros fluidos corporais. As necessidades eram feitas em baldes ou em cabines no convés. Mas nem sempre essas estratégias funcionavam. O cheiro de urina e fezes era sentido de longe por quem esperava no porto.

7. Higiene

Para a higiene bucal, os escravos faziam bochechos com vinagre. Para limpar o corpo, só podiam se enxaguar duas vezes durante toda a viagem. Muitos padeciam de graves infecções oculares e intestinais, e os que não morriam chegavam moribundos ou cegos.

8. Calor

“Houve um companheiro tão desesperado pela sede que tentou apanhar a faca do homem que nos trazia água. Suponho que foi jogado ao mar”, disse o escravo Mahommah Baquaqua. A água era parte das rações diárias, mas nunca supriam o mínimo para matar a sede no calor de 50 graus do porão.

9. Tamanho

Os maiores navios transportavam até 700 escravos, mas ficaram gradativamente menores para poder escapar da fiscalização após a abolição do tráfico pela Inglaterra. As embarcações dividiam homens de mulheres e os carregavam acorrentados e deitados lado a lado nos porões.

Radiografia do tráfico
Veja abaixo as principais rotas do tráfico transatlântico entre 1501 e 1866 e o destino da maioria dos escravizados (em milhões).


Brasil na liderança
Em números absolutos, recebemos cinco vezes mais escravizados do que as colônias espanholas.
-
(Estúdio Nono/Superinteressante)

Abolição nas Américas
O Haiti tomou a dianteira dos movimentos pela liberade, seguido pela Inglaterra. O Brasil seria o último a libertar escravizados
1793 – Haiti
1822 – República Dominicana
1823 – Chile
1824 – Guatemala, El Salvador, Honduras, Nicarágua, Costa Rica
1826 – Bolívia
1829 – México
1833 – Antígua e Barbuda, Bahamas, Barbados, Belize, Guiana, Jamaica, Montserrat, São Cristóvão e Nevis, Trinidad e Tobago
1842 – Paraguai e Uruguai
1848 – Guadalupe e Guiana Francesa
1851 – Colômbia, Equador e Panamá
1853 – Argentina
1854 – Venezuela
1855 – Peru
1863 – Curaçao e Suriname
1865 – Estados Unidos
1873 – Porto Rico
1886 – Cuba
1888 – Brasil
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